sexta-feira, 3 de junho de 2011

Vivências em Língua Portuguesa

Olá, colegas!






Estou compartilhando aqui os textos que compuseram o nosso álbum (meu e de Talita)... 
Bem, como ele ficou beeeem grande , mandamos os arquivos em .pdf...
Basta acessar os links abaixo e fazer download!
Boa leitura!!!!


Grupo 1
Grupo 2
Grupo 3
Grupo 4
Grupo 5

Amanda Reis 

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O sabido sem estudo, Manuel Camilo dos Santos

Deus escreve em linhas tortas
Tão certo chega faz gosto
E fez tudo abaixo dele
Nada lhe será oposto
Um do outro desigual
Por isto o mundo é composto

Vejamos que diferença
Nos seres do Criador
A águia um pássaro tão grande
Tão pequeno um beija-flor
A ema tão corredeira
E o urubu tão voador

Vê-se a lua tão formosa
E o sol tão carrancudo
Vê-se um lajedo tão grande
E um seixinho tão miúdo
O muçu tão mole e liso
O jacaré tão cascudo

Vê-se um homem tão calado
Já outro tão divertido
Um mole, fraco e mofino
Outro valente e atrevido
Às vezes um rico tão tolo
E um pobre tão sabido

É o caso que me refiro
De quem pretendo contar
A vida d’um homem pobre
Que mesmo sem estudar
Ganhou o nome de sábio
E por fim veio a enricar

Esse homem nunca achou
Nada que o enrascasse
Problema por mais difícil
Nem cilada que o pegasse
Quenguista que o iludisse
Questão qu’ele não ganhasse

Era um tipo baixo e grosso
Musculoso e carrancudo
Não conhecia uma letra
Porém sabia de tudo
O povo o denominou
O Sabido Sem Estudo...

Um dia chegou-lhe um moço
Já em tempo de chorar
Dizendo que tinha dado
Cem contos para guardar
Num hotel e o hoteleiro
Não quis mais o entregar

O Sabido Sem Estudo
Disse: - isto é novidade?
Se quer me gratificar
Vamos lá hoje d etarde
Se ele entregar disse o moço:
- Dou ao senhor a metade

O Sabido Sem Estudo
Disse: - você vá na frente
Que depois eu vou atrás
Quando eu chegar se apresente
Faça que não me conhece
Aí peça novamente

O Sabido Sem Estudo
Logo assim que lá chegou
Falou com o hoteleiro
Este alegre o abraçou
O rapaz nesse momento
Também se apresentou

O Sabido Sem Estudo
Disse: - Eu quero me hospedar
Me diga se a casa é séria
Pois eu preciso guardar
Quinhentos contos de réis
Pra depois vir procurar

Respondeu o hoteleiro:
- Pois não, a casa é capaz
Agora mesmo eu já ia
Entregar a este rapaz
Cem contos que guardei dele
Há pouco dias atrás

Nisto o dono do hotel
Entrou e saiu ligeiro
Com um pacote, disse ao moço:
- Pronto amigo, seu dinheiro
Confira que está certo
Pois sou homem verdadeiro

Aí o Sabido disse:
- Ladrão se pega é assim
Você enganou o tolo
Mas foi lesado por mim
Vou metê-lo na polícia
Ladrão, safado, ruim

O hoteleiro caiu
Nos pés dele lhe rogando:
- Ó meu senhor não descubra
Disse ele: - só me dando
A metade do dinheiro
Que você ia roubando

O hoteleiro prevendo
A derrota em que caía
Além de ir pra cadeia
Perder toda freguesia
Teve que gratificar-lhe
Se não ele descobria

Foi ver os cinqüenta contos
No mesmo instante lhe deu
Outros cinqüenta do moço
Ele também recebeu
E disse: - nestas questões
Quem ganha sempre sou eu

E assim correu a fama
Do Sabido Sem Estudo
Quando ele possuía
Um cabedal bem graúdo
O rei logo indignou-se
Quando lhe contaram tudo

Disse o rei: - e esse homem
Sem nada ter estudado
Vive de vencer questão?
Isso é pra advogado
Vou botá-lo num enrasque
Depois o mato enforcado

O rei mandou o chamar
E disse: - eu quero saber
Se o senhor é sabido
Como ouço alguém dizer
Vou decidir sua sorte
Ou enricar ou morrer

Você agora vai ser
O médico do hospital
E dentro de quatro dias
Tem que curar afinal
Os doentes que lá estão
De qualquer que seja o mal

Se você nos quatro dias
Deixar-me tudo curado
De forma que fique mesmo
O prédio desocupado
Ganhará cinco mil contos
Se não será degolado

Está certo disse ele
E saiu dizendo assim:
- O rei com essa asneira
Pensa que vai dar-me fim
Pois eu vou mostrar a ele
Se isto é nada pra mim

E chegando no hospital
Disse à turma de enfermeiros:
- Vocês podem ir embora
Eu sou médico verdadeiro
De amanhã em diante aqui
Vocês não ganham dinheiro

Porque amanhã eu chego
Bem cedo aqui neste canto
Mato um destes doentes
E cozinho um tanto ou quanto
Com o caldo faço remédio
E curar os outros eu garanto

Foram embora os enfermeiros
E ele saiu calado
Os doentes cada um
Ficou dizendo cismado
- Qual será o que ele mata?
Será eu? Isto é danado!...

Outro dizia consigo:
- Será eu o caipora?
Mais tarde um disse: - E eu
Estou sentindo melhora
Outro levantou e disse:
- Estou melhor, vou embora

Um amarelo que estava
Batendo o papo e inchado
Lavantou-se e disse: - Eu
Estou até melhorado
Pois já estou me achando
Mais forte, gordo e corado

Já estou sentindo calor
De vez em quando um suor
Um doente disse: - Tu
Estás é muito peior
Disse o amarelo: - Não
Vou embora, estou melhor

E assim foram saindo
Cada qual para o seu lado
Quando chegava na porta
Dizia: - Vôte danado!
O diavo é quem fica aqui
Pra amanhã ser cozinhado

Um moço disse que ouviu
Um mudo e surdo dizer
Que um cego tinha visto
Um aleijado correr
Sozinho de madrugada
Já com medo de morrer

De fato um aleijado
Que tinha as pernas pegadas
Foi dormir, quando acordou
Não achou os camaradas
A casa estava deserta
E as camas desocupadas

Com medo pulou da cama
E as pernas desencolheu
Rasgou a "péia" no meio
E assombrado correu
Dizendo: - Fiquei dormindo
E nem acordaram eu!...

No outro dia bem cedo
O Sabido Sem estudo
Chegando no hospital
Achou-o deserto de tudo
Sorriu e disse consigo:
- Passei no rei um canudo

O Sabido Sem Estudo
Chegou no prazo marcado
Na corte e disse ao rei:
- Pronto já fiz seu mandado
Os doentes do hospital
Já saiu tudo curado

O rei foi pessoalmente
Percorrer o hospital
Não achando um só doente
Disse consigo afinal:
- Aquele ou é satanás
Ou um ente divinal

Deu-lhe o dinheiro e lhe disse:
- Retire-se do meu reinado
O Sabido Sem Estudo
Lhe disse: - Muito obrigado
Pra ganhar dinheiro assim
Tem às ordens um seu criado


Campina Grande, PB, 21/11/1955

Nos caminhos da educação, Moreira de Acopiara

Eu já escrevi cordéis
Falando de Lampião,
Frei Damião, padre Cícero
E outros mitos do sertão,
Mas agora os versos meus
Serão sobre educação.

Só que eu não vou fazer isso
Por causa de um bom palpite,
Mas porque um professor
Me fez o feliz convite.
E sabendo que na vida
Todos temos um limite.

E esse professor me disse:
Bom Moreira, não se enfeze!
Quero que escreva um cordel
Que não tenha tom de tese,
Sobre educação, pra ser
Distribuído no SESI.

Achei a iniciativa
Ser por demais pertinente,
Até porque no Nordeste,
Num passado bem recente,
Cordel alfabetizou
E informou bastante gente.

É que os cordéis sempre são
Histórias bem trabalhadas,
Possuem linguagem fácil,
Estrofes sempre rimadas,
Versos sempre bem medidos,
Palavras cadenciadas.

E eu que nasci no sertão
E no sertão fui criado,
Estou à vontade, pois
De casa para o roçado
Foi através do cordel
Que fui alfabetizado.

E quando fui para a escola
Já tinha boa noção.
Hoje, após ler muitos livros
Já cheguei à conclusão
De que é muito relativo
O assunto EDUCAÇÃO.

Pois já vi analfabetos
Excelentes lavradores,
Pedreiros e carpinteiros,
Ourives, mineradores,
Homens rudes, é verdade,
Mas que têm os seus valores.

Por outro lado, já vi
Gente que se diplomou
E não sei por quais razões
No tempo estacionou;
Não conseguiu progredir
Porque não se reciclou.

Acho também que os humanos
São, de algum modo, educados;
Para algum ofício foram
De algum modo preparados,
Mesmo aqueles que não foram
Ainda alfabetizados.

Por exemplo: um índio velho,
Que de um silvícola não passa,
Ele não foi à escola,
Mas canta, dança, faz graça,
Faz a roça, planta, limpa,
Colhe, coze, pesca e caça.

Sabe construir um arco,
Sabe limpar seu terreiro,
Sabe cuidar da família,
Ajudar um companheiro,
Construir um barco, um teto
E sabe ser um guerreiro.

Ele conhece um remédio
Que alivia a sua dor,
Conhece as plantas, os bichos,
Os ofícios do amor...
E para aprender tais coisas
Teve um orientador.

Se amanhã um acadêmico
Precisar ser deslocado
Até uma grande aldeia
Não vai ter bom resultado.
Pelos homens da floresta
Tem que ser reeducado.

Mas nós somos preparados
Desde pequenos pra ser
Eternos competidores,
E quem possui mais saber
No mundo modernizado
Tem mais chance de vencer.

E nós agora vivemos
Num mundo globalizado
Onde todo ser humano
Deve ser bem informado.
Mas antes disso é preciso
Que seja alfabetizado.

Como disse Paulo Freire,
Um homem muito sabido:
Educação e cultura
Dão à vida mais sentido!
E educar é libertar
De uma vez o oprimido.

O oprimido só sofre
Porque não tem condição
De se defender dos laços
Perversos da opressão.
E o opressor só oprime
Por não ter educação.

Um analfabeto é,
A meu ver, um sofredor
Que é facilmente oprimido.
Mas já disse o professor:
“A educação liberta
Oprimido e opressor”.

Eu estou muito à vontade
Para entoar tal refrão
Porque também já senti
Os efeitos da opressão
Num momento em que eu não tinha
Acesso à educação.

O nosso Brasil possui
Dimensões continentais;
Tudo que se planta dá,
Tem riquezas naturais...
Cidadãos analfabetos
Já não se admite mais.

E o homem que quer crescer,
Nas mais ricas fontes bebe.
E torna-se tudo ou nada
(é o que a gente percebe)
Conforme a educação
Que no caminho recebe.

Nós temos infra-estrutura
E um sistema competente,
Escolas direcionadas
À população carente...
Quem sabe ler vê o mundo
Com uma visão diferente.

O governo federal
Já está determinado:
Disponibilizou verbas
E quer como resultado
Em poucos anos o grande
Brasil alfabetizado.

Todo mundo acha bonito
Aquele que sabe ler,
Sabe interpretar um texto,
Se expressar bem e escrever.
Desse modo a vida fica
Muito melhor de viver.

Mas eu conheço também
Quem só sabe escrevinhar,
Mas um texto, mesmo simples
Não consegue interpretar.
Esses são analfabetos,
Devem se alfabetizar.

O ser humano é capaz,
Tem muita desenvoltura!
Portanto, leia, se envolva
Com boa literatura
Porque bons livros nos trazem
Educação e cultura.

Os homens de mais sucesso
Devoram a matemática,
Consultam bons dicionários,
Conhecem bem a gramática,
Sabem escutar os mestres
E têm noções de informática.

São cuidadosos e vivem
Permanentemente lendo.
As novidades que surgem
Eles já ficam sabendo
E têm mais condições de
Continuar aprendendo.

E você, se agir assim,
Na vida vai render mais;
Leia bons poemas, contos,
Boas revistas, jornais...
Os romances brasileiros
São também fundamentais.

Mas não bote na cabeça
Que você tem que ler tudo.
Não precisa! Escolha uns temas
Que sejam bom conteúdo
E sobre esses temas faça
Um minucioso estudo.

O bom leitor é aquele
Que lê um texto e entende;
Já disse Guimarães Rosa:
“Bom guerreiro não se rende.
Mestre não é quem ensina,
Mas quem de repente aprende”.















Mafalda

Mafalda

O Oráculo, Machado de assis

Conheci outrora um sujeito que era um exemplo de quanto pode a má fortuna quando se dispõe a perseguir um pobre mortal.
Leonardo (era o nome dele) começara por ser mestre de meninos, mas tão mal se houve que no fim de um ano perdera o pouco que possuía e achou-se reduzido a três alunos.
Tentou depois um emprego público, arranjou as cartas de empenho necessárias, chegou mesmo a dar um voto contra as suas convicções, mas quando tudo lhe sorria, o ministério, na forma do geral costume, achou contra si a maioria da véspera e pediu demissão. Subiu um ministério do seu partido, mas o infeliz tinha-se tornado suspeito ao partido por causa do voto e teve uma resposta negativa.
Auxiliado por um amigo da família, abriu uma casa de comércio; mas, tanto a sorte, como a velhacaria de alguns empregados, deram com a casa em terra, e o nosso negociante levantou as mãos para o céu quando os credores concordaram em receber uma certa quantia inferior ao débito, isto em tempo indeterminado.
Dotado de alguma inteligência e levado pela necessidade mais que pelo gosto, fundou uma gazeta literária; mas os assinantes, que eram da massa dos que preferem ler sem pagar a impressão, deram à gazeta de Leonardo uma morte prematura no fim de cinco meses.
Entretanto, subiu de novo o partido a que ele sacrificara a sua consciência e pelo qual sofrera os ódios de outro. Leonardo foi a ele e lembrou-lhe o direito que tinha à sua gratidão; mas a gratidão não é a bossa principal dos partidos, e Leonardo teve de ver-se preterido por algumas influências eleitorais de quem os novos homens dependiam.
Nesta sucessão de contratempos e azares, Leonardo não chegara a perder a confiança na Providência. Doam-lhe os golpes sucessivos, mas uma vez recebidos, ele preparava-se para tentar de novo a fortuna, fundado neste pensamento que havia lido, não me lembra aonde: “.
Preparava-se, pois, a tentar novo assalto, e para isso tinha arranjado uma viagem ao norte, quando viu pela primeira vez Cecília B..., filha do negociante Atanásio B...
Os dotes desta moça consistiam nisto: um rosto simpático e cem contos limpos, em moeda corrente. Era a menina dos olhos de Atanásio. Só constava que tivesse amado uma vez, e o objeto do seu amor era um oficial de marinha de nome Henrique Paes. O pai opôs-se ao casamento por antipatizar com o genro, mas parece que Cecília não amava muito Henrique, visto que apenas chorou um dia, acordando no dia seguinte tão fresca e alegre como se lhe não houvesse empalmado um noivo.
Dizer que Leonardo se apaixonou por Cecília é mentir à história, e eu prezo, antes de tudo, a verdade dos fatos e dos sentimentos; mas é por isso mesmo que eu devo dizer que Cecília não deixou de fazer alguma impressão em Leonardo.
O que causou profunda impressão no ânimo do nosso mal-aventurado e conquistou desde logo todos os seus afetos, foram os cem contos que a pequena trazia em dote. Leonardo não hesitou em abençoar o mau destino que tanto o perseguira para atirar-lhe aos braços uma fortuna daquela ordem.
Que impressão produziu Leonardo no pai de Cecília? Boa, excelente, maravilhosa. Quanto à menina, recebeu-o indiferente. Leonardo confiou em que venceria a indiferença da filha, visto que já possuía a simpatia do pai.
Em todo o caso desfez a viagem.
A simpatia de Atanásio foi ao ponto de fazer de Leonardo um comensal indispensável. À espera do mais, o mal-aventurado Leonardo foi aceitando aqueles adiantamentos.
Dentro de pouco tempo era ele um íntimo da casa.
Um dia Atanásio mandou chamar Leonardo ao gabinete e disse-lhe com ar paternal:
— Tem sabido corresponder à minha estima. Vejo que é um bom moço, e segundo me disse tem sido infeliz.
— É verdade, respondeu Leonardo, sem poder conter um sorriso de júbilo que lhe assomou aos lábios.
— Pois bem, depois de estudá-lo tenho resolvido fazê-lo aquilo que o céu não me concedeu: um filho.
— Ah!
— Espere. Já o é pela estima, quero que o seja pelo auxílio à nossa casa. Tem, desde já, um emprego no meu estabelecimento.
Leonardo ficou um pouco enfiado; esperava que o próprio velho fosse oferecer-lhe a filha, e apenas recebia dele um emprego. Mas depois refletiu; um emprego era aquilo que depois de tanto cuidado vinha encontrar; não era pouco; e daí podia ser que lhe resultasse mais tarde o casamento.
Assim, respondeu beijando as mãos do velho:
— Oh! obrigado!
— Aceita, não?
— Oh! sem dúvida!
O velho ia levantar-se quando Leonardo, tomando subitamente uma resolução, fê-lo conservar-se na cadeira.
— Mas escute...
— O que é?
— Não quero ocultar-lhe uma coisa. Devo-lhe tantas bondades que não posso deixar de ser inteiramente franco. Eu aceito o ato de generosidade com uma condição. Amo D. Cecília com todas as forças de minha alma. Vê-la é aumentar este amor já tão ardente e tão poderoso. Se o coração de V. S. leva a generosidade ao ponto de me admitir na sua família, como me admite na sua casa, aceito. De outro modo é sofrer de um modo que está acima das forças humanas.
Em honra da perspicácia de Leonardo devo dizer que, se ele ousou arriscar assim o emprego, foi por ter descoberto em Atanásio uma tendência para dar-lhe todas as felicidades.
Não se enganou. Ouvindo aquelas palavras, o velho abriu os braços a Leonardo e exclamou:
— Oh! se eu não desejo outra coisa!
— Meu pai! exclamou Leonardo abraçando o pai de Cecília.
O quadro tornou-se comovente.
— De há muito, disse Atanásio, que eu noto a impressão produzida por Cecília e pedia no meu íntimo que uma tão feliz união se pudesse efetuar. Creio que agora nada se oporá. Minha filha é uma menina sisuda, não deixará de corresponder ao seu afeto. Quer que lhe fale já ou esperemos?
— Como queira...
— Ou antes, seja franco; possui o amor de Cecília?
— Não posso dar uma resposta positiva. Creio que não lhe sou indiferente.
— Eu me incumbo de investigar o que há. Demais, a minha vontade há de entrar por muito neste negócio; ela é obediente...
— Oh! forçada, não!
— Qual forçada! É sisuda e há de ver que lhe convém um marido inteligente e laborioso...
— Obrigado!
Separaram-se os dois.
No dia seguinte devia Atanásio instalar o seu novo empregado.
Nessa mesma noite, porém, o velho tocou no assunto de casamento à filha. Começou por perguntar-lhe se acaso não tinha vontade de casar-se. Ela respondeu que não havia pensado nisso; mas disse-o com um sorriso tal que o pai não hesitou em declarar que tivera um pedido formal da parte de Leonardo.
Cecília recebeu o pedido sem dizer palavra; depois, com o mesmo sorriso, disse que ia consultar o oráculo.
O velho não deixou de admirar-se com esta consulta de oráculo e interrogou a filha sobre a significação das suas palavras.
— É muito simples, disse ela, vou consultar o oráculo. Nada faço sem consultar; não dou uma visita, não faço a menor coisa sem consultá-lo. Este ponto é importante; como vê, não posso deixar de consultá-lo. Farei o que ele mandar.
— É esquisito! mas que oráculo é esse?
— É segredo.
— Mas posso dar esperanças ao rapaz?
— Conforme; depende do oráculo.
— Ora, tu estás caçoando comigo...
— Não, meu pai, não.
Era necessário conformar-se à vontade de Cecília, não porque realmente fosse imperiosa, mas porque no modo e no sorriso com que a moça falou o pai descobriu que ela aceitava o noivo e apenas fazia aquilo por espírito de casquelhice.
Quando Leonardo soube da resposta de Cecília não deixou de ficar um tanto atrapalhado. Mas Atanásio tranqüilizou-o comunicando ao pretendente as suas impressões.
No dia seguinte é que Cecília devia dar a resposta do oráculo. A intenção do velho Atanásio estava decidida; no caso de ser contrária a resposta do misterioso oráculo, ele persistiria em obrigar a filha a casar com Leonardo. Em todo o caso far-se-ia o casamento.
Ora, no dia aprazado apresentaram-se em casa de Atanásio duas sobrinhas dele, casadas ambas, e de muito tempo retiradas da casa do tio pelo interesse que tinham tomado por Cecília quando esta quis casar-se com Henrique Paes. A menina reconciliou-se com o pai; mas as duas sobrinhas, não.
— A que lhes devo esta visita?
— Vimos pedir-lhe desculpa do nosso erro.
— Ah!
— Tinha razão, meu tio; e, demais, parece que há um novo pretendente.
— Como souberam?
Cecília mandou-nos dizer.
— Vêm então opor-se?
— Não; apoiar.
— Ora, graças a Deus!
— Nosso desejo é que Cecília se case, com este ou com aquele; é todo o segredo da nossa intervenção em favor do outro.
Feita assim a reconciliação, Atanásio participou às sobrinhas o que havia e qual a resposta de Cecília. Disse igualmente que era aquele o dia marcado pela moça para dar a resposta do oráculo. Riram-se todos da singularidade do oráculo, mas resolveram esperar a resposta dele.
— Se for contrária, apoiar-me-ão?
— Decerto, responderam as duas sobrinhas.
Os maridos destas chegaram pouco depois.
Enfim apareceu Leonardo de casaca preta e gravata branca, trajo muito diverso daquele com que os antigos iam buscar as respostas dos oráculos de Delfos e de Dodona. Mas cada tempo e cada terra com seu uso.
Durante todo o tempo em que as duas moças, os maridos e Leonardo estavam de conversa, Cecília demorava-se no seu quarto consultando, dizia ela, o oráculo.
A conversa versou a respeito do assunto que reunia a todos.
Enfim, seriam oito horas da noite quando Cecília apareceu na sala.
Todos foram a ela.
Depois de feitos os primeiros cumprimentos, Atanásio, meio sério, meio risonho, perguntou à filha:
— Então? que disse o oráculo?
— Ah! meu pai! o oráculo disse que não!
— Então o oráculo, continuou Atanásio, é contrário ao teu casamento com o sr. Leonardo?
— É verdade.
— Pois sinto dizer que sou de opinião contrária ao sr. oráculo, e como a minha pessoa é conhecida enquanto a do sr. oráculo é inteiramente misteriosa, há de fazer-se o que eu quiser, mesmo apesar do sr. oráculo.
— Ah! não!
— Como, não? Queria ver isso! Se eu aceitei essa idéia de consultar bruxarias foi para brincar. Nunca me passou pela cabeça ceder lá às decisões de oráculos misteriosos. Tuas primas são de minha opinião. E demais, eu quero desde já saber que bruxarias são essas... Meus senhores, vamos descobrir o tal oráculo.
A este tempo apareceu um vulto na porta e disse:
— Não precisa!
Todos voltaram-se para ele. O vulto deu alguns passos e parou no meio da sala. Tinha um papel na mão.
Era o oficial de marinha de que falei acima, trajando casaca e luva branca.
— Que faz aqui o senhor? perguntou o velho espumando de raiva.
— Que faço? Sou o oráculo.
— Não aturo caçoadas desta natureza. Com que direito se acha neste lugar?
Henrique Paes por única resposta deu a Atanásio o papel que trazia na mão.
— Que é isto?
— E a resposta à sua pergunta.
Atanásio chegou-se para a luz, tirou os óculos do bolso, pô-los no nariz e leu o papel.
Durante este tempo, Leonardo tinha a boca aberta sem compreender nada.
Quando o velho chegou ao meio do escrito que tinha na mão, voltou-se para Henrique e disse com o maior grau de assombro:
— O senhor é meu genro!
— Com todos os sacramentos da igreja. Não leu?
— E se isto for falso!
— Alto lá, acudiu um dos sobrinhos, nós fomos os padrinhos, e estas senhoras as madrinhas do casamento de nossa prima D. Cecília B... com o sr. Henrique Paes, o qual se efetuou há um mês no oratório de minha casa.
— Ah! disse o velho caindo numa cadeira.
— Mais esta! exclamou Leonardo procurando sair sem ser visto.
Epílogo

Se perdeu a noiva, e tão ridiculamente, nem por isso Leonardo perdeu o lugar. Declarou ao velho que faria um esforço, mas que ficava para corresponder à estima que o velho lhe tributava.
Mas estava escrito que a sorte tinha de perseguir o pobre rapaz.
Daí a quinze dias Atanásio foi acometido de uma congestão de que morreu.
O testamento, que fora feito um ano antes, nada deixava a Leonardo.
Quanto à casa, teve de liquidar-se. Leonardo recebeu a importância de quinze dias de trabalho.
O mal-aventurado deu o dinheiro a um mendigo e foi atirar-se ao mar, na praia de Icaraí.
Henrique e Cecília vivem como Deus com os anjos.












Clara dos Anjos, Lima Barreto


O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de serestas e serenatas, mas gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado, não o sendo tanto atualmente como outrora. Acreditava-se até músico, pois compunha valsas, tangos e acompanhamentos para modinhas.

Aprendera a “artinha” musical na terra de seu nascimento, nos arredores de Diamantina, e a sabia de cor e salteado; mas não safra daí.
Pouco ambicioso em música, ele o era também nas demais manifestações de sua vida. Empregado de um advogado famoso, sempre quisera obter um modesto emprego público que lhe desse direito à aposentadoria e ao montepio, para a mulher e a filha. Conseguira aquele de carteiro, havia quinze para vinte anos, com o qual estava muito contente, apesar de ser trabalhoso e o ordenado ser exíguo.
Logo que foi nomeado, tratou de vender as terras que tinha no local de seu nascimento e adquirir aquela casita de subúrbio, por preço módico, mas, mesmo assim, o dinheiro não chegara e o resto pagou ele em prestações. Agora, e mesmo há vários anos, estava de plena posse dela. Era simples a casa. Tinha dois quartos, um que dava para a sala de visitas e outro, para a de jantar. Correspondendo a um terço da largura total da casa, havia nos fundos um puxadito que era a cozinha. Fora do corpo da casa, um barracão para banheiro, tanque, etc.; e o quintal era de superfície razoável, onde cresciam goiabeiras maltratadas e um grande tamarineiro copado.
A rua desenvolvia-se no plano e, quando chovia, encharcava que nem um pântano; entretanto, era povoada e dela se descortinava um lindo panorama de montanhas que pareciam cercá-la de todos os lados, embora a grande distância. Tinha boas casas a rua. Havia até uma grande chácara de outros tempos com aquela casa característica de velhas chácaras de longa fachada, de teto acaçapado, forrada de azulejos até â metade do pé-direito, um tanto feia, é fato, sem garridice, mas casando-se perfeitamente com as anosas mangueiras, com as robustas jaqueiras e com todas aquelas grandes e velhas árvores que, talvez, os que as plantaram, não tivessem visto frutificar.
Por aqueles tempos, nessa chácara, se haviam estabelecido as “bíblias”. Os seus cânticos, aos sábados, quase de hora em hora, enchiam a redondeza. O povo não os via com hostilidade, mesmo alguns humildes homens e pobres raparigas simpatizavam com eles, porque, justificavam, não eram como os padres que, para tudo, querem dinheiro.
Chefiava os protestantes um americano, Mr. Sharp, homem tenaz e cheio de uma eloqüência bíblica que devia ser magnífica em inglês; mas que, no seu duvidoso português, se fazia simplesmente pitoresca. Era Sharp daquela raça curiosa de yankees que, de quando em quando, à luz da interpretação de um ou mais versículos da Bíblia, fundam seitas cristãs, propagam-nas, encontram adeptos logo, os quais não sabem bem por que foram para a nova e qual a diferença que há entre esta e a de que vieram.
Fazia prosélitos e, quando se tratava de iniciar uma turma, os noviços dormiam em barracas de campanha, erguidas no eirado da chácara ou entre as suas velhas árvores maltratadas e desprezadas. As cerimônias preparatórias duravam uma semana, cheia de cânticos divinos; e a velha propriedade, com as suas barracas e salmodias, adquiria um aspecto esquisito de convento ao ar livre de mistura com um certo ar de acampamento militar.
Da redondeza, poucos eram os adeptos ortodoxos; entretanto, muitos lá iam por mera curiosidade ou para deliciar-se com a oratória de Mr. Sharp.
Iam sem nenhuma repugnância, pois é próprio do nosso pequeno povo fazer um extravagante amálgama de religiões e crenças de toda sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme os transes de sua existência. Se se trata de afastar atrasos de vida, apela para a feitiçaria; se se trata de curar uma moléstia tenaz e resistente, procura o espírita; mas não falem à nossa gente humilde em deixar de batizar o filho pelo sacerdote católico, porque não há quem não se zangue: Meu filho ficar pagão! Deus me defenda!
Joaquim não fazia exceção desta regra e sua mulher, a Engrácia, ainda menos.
Eram casados há quase vinte anos, mas só tinham uma filha, a Clara. O carteiro era pardo claro, mas com cabelo ruim, como se diz; a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso.
Na tez, a filha puxava o pai; e no cabelo, à mãe. Na estatura, ficara entre os dois. Joaquim era alto, bem alto, acima da média ombros quadrados; a mãe, não sendo muito baixa, não alcançava a média, possuindo uma fisionomia miúda, mas regular, o que não acontecia com o marido que tinha o nariz grosso, quase chato. A filha, a Clara, tinha ficado em tudo entre os dois; média deles,era bem a filha de ambos. Habituada às musicatas do pai, crescera cheia de vapores das modinhas e enfumaçara a sua pequena alma de rapariga pobre com os dengues e a melancolia dos descantes e cantarolas.
Com dezessete anos, tanto o pai como a mãe tinham por ela grandes desvelos e cuidados. Mais depressa ia Engrácia à venda de “seu” Nascimento, buscar isto, ou aquilo, do que ela. Não que a venda de “seu” Nascimento fosse lugar de badernas; ao contrário: as pessoas que lá faziam “ponto” eram de todo o respeito.
O Alípio, uma delas, era um tipo curioso de rapaz, que, conquanto pobre, não deixava de ser respeitador e bem comportado. Tinha um aspecto de galo de briga; entretanto, estava longe de possuir a ferocidade repugnante desses galos malaios de apostas, não possuindo — é preciso saber — nenhuma.
Um outro que aparecia sempre lá era um inglês, Mr. Persons, desenhista de uma grande oficina mecânica das imediações. Quando saía do trabalho, passava na venda, lá se sentava naqueles característicos tamboretes de abrir e fechar, e deixava-se ficar até ao anoitecer bebericando ou lendo os jornais do senhor Nascimento. Silencioso quase taciturno, pouco conversava e implicava muito com quem o tratava por mister.
Havia lá também o filósofo Meneses, um velho hidrópico, que se tinha na conta de sábio, mas que não passava de um simples dentista clandestino, e dizia tolices sobre todas as cousas. Era um velho branco, simpático, com um todo de imperador romano, barbas alvas e abundantes.
Aparecia, às vezes, o J. Amarante, um poeta, verdadeiramente poeta, que tivera o seu momento de celebridade em todo o Brasil, se ainda não a tem; mas que, naquela época, devido ao álcool e a desgostos íntimos, era uma triste ruína de homem, apesar dos seus dez volumes de versos, dez sucessos, com os quais todos ganharam dinheiro menos ele. Amnésico, semi-imbecilizado, não seguia uma conversa com tino e falava desconexamente. O subúrbio não sabia bem quem ele era; chamava-o muito simplesmente — o poeta.
Um outro freqüentador da venda era o velho Valentim, um português dos seus sessenta anos e pouco, que tinha o corpo curvado para diante, devido ao hábito contraído no seu oficio de chacareiro que já devia exercer há mais de quarenta. Contava ‘casos” e anedotas de sua terra, pontilhando tudo de rifões portugueses do mais saboroso pitoresco.
Apesar de ser assim decente, Clara não ia à venda; mas o pai, em alguns domingos, permitia que fosse com as amigas ao cinema do Méier ou Engenho de Dentro, enquanto ele e alguns amigos ficavam em casa tocando violão, cantando modinhas e bebericando parati.
Pela manhã, logo nas primeiras horas, os companheiros apareciam, tomavam café, iam em seguida para o quintal, para debaixo do tamarineiro, jogar a bisca, com o litro de cachaça ao lado; e ai, sem dar uma vista d’olhos sobre as montanhas circundantes, nuas e empedrouçadas, deixavam-se ficar até à hora do “ajantarado” que a mulher e a filha preparavam.
Só depois deste é que as cantorias começavam. Certo dia, um dos companheiros dominicais do Joaquim pediu-lhe licença para trazer, no dia do aniversário dele, que estava próximo, um rapaz de sua amizade, o Júlio Costa, que era um exímio cantor de modinhas. Acedeu. Veio o dia da festa e o famoso trovador apareceu. Branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo, não tinha as tais melenas denunciadoras, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se seriamente com um apuro muito suburbano; sob a tesoura de alfaiate de quarta ordem. A única pilantragem adequada ao seu mister que apresentava consistia em trazer o cabelo repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente pelo meio. Acompanhava-o o violão. A sua entrada foi um sucesso.
Todas as moças das mais diferentes cores que, ai, a pobreza harmonizava e esbatia, logo o admiraram. Nem César Bórgia, entrando mascarado, num baile à fantasia dado por seu pai, no Vaticano, causaria tanta emoção.
Afirmavam umas para as outras:
— É ele! É ele, sim!
Os rapazes, porém, não ficaram muito contentes com isto; e, entre eles, puseram-se a contar histórias escabrosas da vida galante do cantor de modinhas.
Apresentado aos donos da casa e à filha, ninguém notou o olhar guloso que deitou para os seios empinados de Clara.
O baile começou com a música de um “terno” de flauta, cavaquinho e violão. A polca era a dança preferida e quase todos a dançavam com requebros próprios de samba.
Num intervalo Joaquim convidou:
— Por que não canta, “seu” Júlio?
— Estou sem voz, respondeu ele.
Até ali, ele tinha tomado parte no “remo”; e, repinicando as cordas, não deixava de devorar com os olhos os bamboleios de quadris de Clarinha, quando dançava. Vendo que seu pai convidara o rapaz, animou-se a fazê-lo também:
— Por que não canta, “seu” Júlio? Dizem que o senhor canta tão bem…
Esse — “tão bem” — foi alongado maciamente. O cantador acudiu logo:
— Qual, minha senhora! São bondades dos camaradas…
Concertou a “pastinha” com as duas mãos, enquanto Clara dizia:
— Cante! Vá!
— Já que a senhora manda, disse ele, vou cantar.
Com todo o dengue, agarrou o violão, fez estalar as cordas e anunciou:
— Amor e sonho.
E começou com uma voz muito alta, quase berrando, a modinha, para depois arrastá-la num tom mais baixo, cheio de mágoa e langor, sibilando os “ss”, carregando os “rr” das metáforas horrendas de que estava cheia a cantoria. A cousa era, porém, sincera; e mesmo as comparações estrambóticas levantavam nos singelos cérebros das ouvintes largas perspectivas de sonhos, erguiam desejos, despertavam anseios e visões douradas. Acabou. Os aplausos foram entusiásticos e só Clarínha não aplaudiu, porque, tendo sonhado durante toda a modinha, ficara ainda embevecida quando ela acabou…
Dias depois, vindo à janela por acaso — era de tarde — sem grande surpresa, como se já o esperasse, Clara recebeu o cumprimento do cantor magoado. Não pôs malícia na cousa, tanto assim que disse candidamente à mãe:
— Mamãe, sabe quem passou aí?
— Quem?
— “Seu” Júlio.
— Que Júlio?
— Aquele que cantou nos “anos” de papai.
A vida da casa, após a festança de aniversário do Joaquim, continuou a ser a mesma. Nos domingos, aquelas partidas de bisca com o Eleutério, servente da biblioteca, e com o Augusto, guarda municipal, acompanhadas de copitos de cachaça, e o violão, à tarde. Não tardou que se viesse agregar um novo comensal: era o Júlio Costa, o famoso modinheiro suburbano, amigo íntimo do Augusto e seu professor de trovas.
Júlio quase nunca jantava, pois tinha sempre convites em todos os quatro pontos cardeais daquelas paragens. Tomava parte nas partidas de bisca, de parceirada, e pouco bebia. Apesar de não demorar-se pela tarde adentro, pôde ir cercando a rapariga, a Clara, cujos seios empinados, volumosos e redondos fascinavam-lhe extraordinariamente e excitavam a sua gula carnal insaciável. Em começo foram só olhares que a moça, com os seus úmidos olhos negros, grandes, quase cobrindo toda a esclerótica, correspondia a furto e com medo; depois, foram pequenas frases, galanteios, trocados às escondidas, para, afinal, vir a fatídica carta.
Ela a recebeu, meteu-a no seio e, ao deitar-se, leu-a, sob a luz da vela, medrosa e palpitante. A carta era a cousa mais fantástica, no que diz respeito à ortografia e à sintaxe, que se pode imaginar; tinha, porém, uma virtude: não era copiada do Secretário dos amantes, era original. Contudo a missiva fez estremecer toda a natureza virgem de Clara que, com a sua leitura, sentiu haver nela surgido alguma cousa de novo, de estranho, até ali nunca sentida. Dormiu mal. Não sabia bem o que fazer: se responder, se devolver. Viu o olhar severo do pai; as recriminações da mãe. Ela, porém, precisava casar-se. Não havia de ser toda a vida assim como um cão sem dono… Os pais viriam a morrer e ela não podia ficar pelo mundo desamparada… Uma dúvida lhe veio: ele era branco; ela, mulata… Mas que tinha isso? Tinham-se visto tantos casos… Lembrou-se de alguns… Por que não havia de ser? Ele falava com tanta paixão… Ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios duros estouravam de virgindade e de ansiedade de amar… Responderia; e assim fez, no dia seguinte. As visitas de Costa tomaram-se mais demoradas e as cartas mais constantes. A mãe desconfiou e perguntou à filha:
— Você está namorando “seu” Júlio, Clarinha?
— Eu, mamãe! Nem penso nisso…
— Está, sim! Então não vejo?
A menina pôs-se a chorar; a mãe não falou mais nisso; e Clara, logo que pôde, mandou pelo Aristides, um molecote da vizinhança, uma carta ao modinheiro, relatando o fato.
Júlio morava na estação próxima e a situação de sua família era bem superior à sua namorada. O seu pai tinha um emprego regular na prefeitura e era, em tudo, diferente do filho. Sisudo, grave, sério, ia até a imponência grotesca do bom funcionário; e não seria capaz de admitir que a namorada do filho dançasse na sua sala. Sua mulher não tinha o ar solene do marido, era, porém, relaxada de modos e hábitos. Comia com a mão, andava descalça, catava intrigas e “novidades” da vizinhança; mas tinha, apesar disso, uma pretensão intima de ser grande cousa, de uma grande família. Além do Júlio, tinha três filhas, uma das quais já era adjunta municipal; e, das outras duas, uma estava na Escola Normal e a mais moça cursava o Instituto de Música.
Tiravam muito ao pai, no gênio sobranceiro, no orgulho fofo da família; e tinham ambição de casamentos doutorais. Mercedes, Adelaide e Maria Eugênia, eram esses os nomes, não suportariam de nenhuma forma Clara como cunhada, embora desprezassem soberbamente o irmão pelos seus maus costumes, pelo seu violão, pelos seus plebeus galos de briga e pela sua ignorância crassa.
Pequeno-burguesas, sem nenhuma fortuna, mas, devido à situação do pai e a terem freqüentado escolas de certa importância, elas não admitiriam, para Clara, senão um destino: o de criada de servir.
Entretanto, Clara era doce e meiga; inocente e boa, podia-se dizer que era muito superior ao irmão delas pelo sentimento, ficando talvez acima dele pela instrução, conquanto fosse rudimentar, como não podia deixar de ser, dada a sua condição de rapariga pobríssima. Júlio era quase analfabeto e não tinha poder de atenção suficiente para ler o entrecho de uma fita de cinematógrafo. Muito estúpido, a sua vida mental se cifrava na composição de modinhas delambidas, recheadas das mais estranhas imagens que a sua imaginação erótica, sufocada pelas conveniências, criava, tendo sempre perante seus olhos o ato sexual.
Mais de uma vez, ele se vira a braços com a polícia por causa de defloramento e seduções de menores.
O pai, desde a segunda, recusara intervir; mas a mãe, dona Inês, a custo de rogos, de choro, de apelo — para a pureza de sangue da família, conseguira que o marido, o capitão Bandeira, procurasse influenciar, a fim de evitar que o filho casasse com uma negrinha de dezesseis anos, a quem o Júlio “tinha feito mal”.
Apesar de não ser totalmente má, os seus preconceitos junto à estreiteza da sua inteligência não permitiram ao seu coração que agasalhasse ou protegesse o seu infeliz neto. Sem nenhum remorso, deixou-o por aí, à toa, pelo mundo…
O pai, desgostoso com o filho, largara-o de mão; e quase não se viam. Júlio vivia no porão da casa ou nos fundos da chácara onde tinha gaiolas de galos de briga, o bicho mais hediondo, mais repugnantemente feroz que é dado a olhos humanos ver. Era a sua indústria e o seu comércio, esse negócio de galos e as suas brigas em rinhadeiros. Barganhava-os, vendia-os, chocava as galinhas, apostava nas rinhas; e com o resultado disso e com alguns cobres que a mãe lhe dava, vivia e obtinha dinheiro para vestir-se. Era o tipo completo do vagabundo doméstico, como há milhares nos subúrbios e em outros bairros do Rio de Janeiro.
A mãe, sempre temendo que se repetissem os seus ajustes de contas com a polícia, esforçava-se sempre por estar ao corrente dos seus amores. Veio a saber do seu último com a Clara e repreendeu-o nos termos mais desabridos. Ouviu-a o filho respeitosamente, sem dizer uma palavra; mas, julgou da boa política relatar, a seu modo, por carta, tudo à namorada. Assim escreveu:
“Queridinha confeço-te que ontem quando recebi a tua carta minha mãe viu e fiquei tão louco que confessei tudo a mamãe que lhe amava muito e fazia por você as maiores violências, ficaram todos contra mim é a razão porque previno-te que não ligues ao que lhe disserem, por isso pesso-te que preze bem o meu sofrimento. Pense bem e veja se estás resolvida a fazer o que lhe pedi na última cartinha. Saudades e mais saudades deste infeliz que tanto lhe adora e não é correspondido. O teu Júlio”.
Clara já estava habituada com a redação e ortografia do seu namorado, mas, apesar de escrever muito melhor, a sua instrução era insuficiente para desprezar um galanteador tão analfabeto. Ainda por cima, a sua fascinação pelo modinheiro e a sua obsessão pelo casamento lhe tiravam toda a capacidade critica que pudesse ter. A carta produziu o efeito esperado por Júlio. Choro, palpitações, anseios vagos, esperanças nevoentas, vislumbres de céus desconhecidos e encantados — tudo isso aquela carta lhe trouxe, além do halo de dedicação e amor por ela com que Clara fez resplandecer, na imaginação, as pastinhas do violeiro. Daí a dias, fez o prometido, isto é, deixou a janela do quarto aberta para que ele entrasse no aposento. Repetiu a façanha quase todas as noites seguidas, sem que ele se demorasse muito no quarto.
Nos domingos, aparecia, cantava e semelhava que entre ambos não havia nada. Um belo dia, Clara sentiu alguma cousa de estranho no ventre. Comunicou ao namorado. Qual! Não era nada, disse ele. Era, sim; era o filho. Ela chorou, ele acalmou-a, prometendo casamento. O ventre crescia, crescia…
O cantador de modinhas foi fugindo, deixou de aparecer a miúdo; e Clara chorava. Ainda não lhe tinham percebido a gravidez. A mãe, porém, com auxilio de certas intimidades próprias de mãe para filha, desconfiou e pó-la em confissão. Clara não pôde esconder, disse tudo; e aquelas duas humildes mulheres choraram abraçadas diante do irremediável… A filha teve uma idéia:
— Mamãe, antes da senhora dizer a papai, deixa-me ir até à casa dele, para falar com a sua mãe?
A velha meditou e aceitou o alvitre:
— Vai!
Clara vestiu-se rapidamente e foi. Recebida com altaneria por uma das filhas, disse que queria falar à mãe de Júlio. Recebeu-a esta rispidamente; mas a rapariga, com toda a coragem e com sangue-frio difícil de crer, confessou-lhe tudo, o seu erro e a sua desdita.
— Mas o que é que você quer que eu faça?
— Que ele se case comigo, fez Clara num só hausto.
— Ora, esta! Você não se enxerga! Você não vê mesmo que meu filho não é para se casar com gente da laia de você! Ele não amarrou você, ele não amordaçou você… Vá-se embora, rapariga! Ora já se viu! Vá!
Clara saiu sem dizer nada, reprimindo as lágrimas, para que na rua não lhe descobrissem a vergonha. Então, ela? Então ela não se podia casar com aquele calaceiro, sem nenhum título, sem nenhuma qualidade superior? Por quê?
Viu bem a sua condição na sociedade, o seu estado de inferioridade permanente, sem poder aspirar a cousa mais simples a que todas as moças aspiram. Para que seriam aqueles cuidados todos de seus pais? Foram inúteis e contraproducentes, pois evitaram que ela conhecesse bem justamente a sua condição e os limites das suas aspirações sentimentais… Voltou para casa depressa. Chegou; o pai ainda não viera.
Foi ao encontro da mãe. Não lhe disse nada; abraçou-a chorando. A mãe também chorou e, quando Clara parou de chorar, entre soluços, disse:
— Mamãe, eu não sou nada nesta vida.